POLÍTICA COMPARADA: LIÇÕES DA DEMOCRACIA E DA DITADURA NA PERIFERIA

03/10/2020 14:37

Resenha do livro de Francisco Canella, “Entre o local e a cidade: memórias e experiências de duas gerações de moradores da periferia urbana em Florianópolis (1990-2010)

(Ed. Todapalavra, Ponta Grossa, PR. 2019. (Disponível para aquisição na Livraria Livros&Livros, Florianópolis, UFSC).

 

Autor: Paulo Krischke, Pesquisador Sênior, CNPq, no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas, UFSC

 

Em Florianópolis ocorreu uma diversificação dos movimentos de moradores em bairros populares de Santa Catarina. Este estado da federação foi um dos poucos durante o regime militar, que logrou criar e manter uma rede de apoio popular ao governo autoritário, controlando a distribuição e o acesso a bens e serviços de consumo coletivo, (água, luz, iluminação, arruamentos, escolas, postos de saúde, segurança, transporte, etc.) entre essas comunidades das periferias. Isto foi feito através principalmente da nomeação estatal de diretorias para os “Conselhos Comunitários”, que passaram a organizar o voto da população nas eleições que passaram então a existir periodicamente no Brasil.

O grande fascínio desta obra do Prof. Canella está no seu peculiar caráter comparativo, com que examina as diferentes formas e sentidos, métodos e objetivos, de duas gerações de moradores de um mesmo bairro, às vezes membros das mesmas famílias, muitas vezes também amigos e vizinhos entre si. Isso tudo enquanto mesmo assim, escolheram caminhos diversos, às vezes opostos e sempre competitivos, de inserção pessoal, profissional, social e coletiva, nos meandros, desafios e oportunidades, da mesma cidade de Florianópolis. E que ainda também encontram, até hoje, dificuldades de inserção e reconhecimento de seus direitos como cidadãos desta cidade – nem sempre aquelas mesmas barreiras enfrentadas pela geração anterior, mas outras tantas que também desafiam o sentido de justiça e pedem resolução ainda mais ampla dos poderes públicos e da cidadania.

Naqueles bairros que não eram controlados pelos “Conselhos” surgiram “Associações de Moradores”, geralmente lideradas pela oposição do MDB e outros grupos minoritários, que se opunham ao regime militar, e disputavam com os “Conselhos” o acesso aos bens e serviços de consumo coletivo. Outra rede ainda menor, autodenominada “Periferia” era principalmente organizada por CEBs (“Comunidades Eclesiais de Base”, da Igreja Católica) que se opunham tanto aos “Conselhos” como às “Associações”, e lideravam movimentos mais radicais de moradia (invasão de espaços vagos, públicos e privados), como o Movimento dos “Sem Tetos”– estudado pelo Prof. Canella na primeira parte deste livro.

Um interesse científico desta transição estudada pelo Prof. Canella, é que exemplifica com riqueza de detalhes, uma ampliação longitudinal interdisciplinar das ciências sociais comparativas. Por exemplo, o método da ciência política comparativa surgiu nos Estados Unidos da Guerra Fria, para enaltecer as vantagens democráticas daquele país, em comparação às conquistas graduais de liberdade, realizadas no mundo inteiro.

Mas hoje esse ângulo está profundamente alterado, por pesquisas comparativas como esta do Prof. Francisco Canella no Brasil. É claro que a própria cidade de Florianópolis também mudou muito (talvez dramaticamente) durante esse processo e período de tempo, para as duas gerações deste bairro estudado por Canella. A ênfase dos noticiários locais é quase sempre posta no assombroso crescimento numérico da população de Florianópolis, que mais que dobrou nestes anos todos, enquanto as limitações de espaço, tempo e recursos materiais disponíveis, assim como as belezas e riquezas naturais, seguem parasitadas pela especulação imobiliária, ou até mesmo têm sido reduzidas ou proporcionalmente devastadas/desperdiçadas pelos mesmos políticos (ou seus descendentes) que paradoxalmente se elegeram prometendo protegê-las e preservá-las para as gerações futuras.

Mas é justamente neste outro sentido qualitativo, ainda tão insatisfatório, que os processos de democratização do Brasil e da América Latina poderão oferecer lições comparativas de validade excepcional para o mundo inteiro. Todos os estudos de padrão internacional sobre política comparada sempre enaltecem a dependência do sucesso econômico como garantia da democracia política. Mas os estudos de casos comparativos dos grupos, bairros, cidades e regiões do Brasil e outros países considerados menos prósperos e “desenvolvidos” do mundo oferecem lições contrárias, de coragem, criatividade, dedicação e persistência, que consagram o valor moral, a persistência imbatível, e a pluralidade de intenções, inovações e liberdades, que animam desde sempre a resistência ao patrimonialismo, à discriminação e ao preconceito racista, sexista, machista, chovinista, etc — que se exercem contra os povos oprimidos. Francisco Canella termina seu livro afirmando:

“(…) os projetos que tiveram tanta importância na vida dos abandonados e dos jovens, na constituição de atores juvenis diferenciados, não foi obra do  Estado e de suas políticas públicas, mas da ação dos próprios moradores, de organizações do terceiro setor e de universidades. Por parte do Estado, apesar das melhorias citadas anteriormente, predominam ainda o abandono e o estigma dessas áreas da cidade.”

Esse acompanhamento feito pelo Prof. Canella junto à juventude e aos moradores do bairro, com apoio de seus alunos e colegas da UDESC, demonstra uma visão amplamente inovadora e compensatória das carências reconhecidas na cidade. Longe da ambição, do individualismo e da competição desmedida, reforçada pelo neoliberalismo dominante, constatou-se aqui a solidariedade, a colaboração e a autoestima da cidadania, no enfrentamento dos seus problemas comuns.

Claro, devemos sempre reconhecer também que cada pessoa necessita e merece cultivar sua vida pessoal, e realizar seus sonhos e aspirações individuais, com o auxílio e a colaboração dos demais, parentes, amigos, e vizinhos, e com a assistência e estímulo de todos que devemos atuar no espaço público, e nas instituições do estado, do município e da nação brasileira. Para isso também pagamos impostos e elegemos nossos representantes numa democracia, não é certo? Para garantir nossa liberdade de iniciativa, colaboração e capacidade de organização, no interesse mútuo e da sociedade em que vivemos. Essas virtudes, conquistas e qualidades da vida democrática são o nosso maior tesouro, que jamais poderemos dispensar, e que estamos apenas conquistando pouco a pouco — cabendo a cada geração determinar os seus próprios caminhos e sua contribuição. O panorama que Francisco Canella apresenta nesta crônica de duas gerações da cidadania de Florianópolis, é portanto “uma localização” (como enfatiza) do processo de democratização em nosso país. Este é um processo “glocal” – como enfatizam os ecologistas, de “pensar global e agir local”.

Pois houve aqui em Florianópolis uma primeira geração com grande coragem, destemor e desafio ao autoritarismo, quando a força conjunta da união dos moradores conquistou seu território, logrando derrubar e superar os preconceitos e a discriminação contra eles mesmos: os mais pobres e injustiçados da cidade. Depois foi necessário negociar formas de convivência mais estáveis e rotineiras, e os jovens principalmente foram buscar estudo e ocupação para seguir vivendo, criando simultaneamente laços e oportunidades mais ricas e variadas, de convívio, lazer, fraternidade e empreendimento. As escolas e serviços de saúde, de assistência social e extensão universitária (neste como em outros bairros, com apoio da UDESC) foram muito úteis no estímulo a estas iniciativas, reforçando o caráter público desta etapa de expansão e fortalecimento da democracia.

Estes exemplos mostram como as duas gerações que movimentam este bairro têm construído e partilhado uma trajetória dinâmica e mutante, enriquecedora da vida da cidade e do país. Que elas sirvam de exemplo para nós todos, que enfrentamos no Brasil inteiro, a alienação materialista neoliberal!

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